Após massacre, bandeira confederada é questionada até em museus nos EUA

Um piso abaixo do trreo no Museu Confederado de Richmond, ao final de um corredor com paredes de blocos de concreto e por trs de dois conjuntos de portas trancadas, uma cmara de temperatura controlada abriga a maior coleo mundial de um dos mais reverenciados e repudiados objetos na histria dos Estados Unidos: bandeiras da era confederada.

Aqui, catalogadas e preservadas minuciosamente, h mais de 550 bandeiras da era da guerra, confeccionadas em seda, l e algodo. Uma delas, feita com um vestido de noiva, tem a palavra “lar” bordada em azul e cercada por estrelas azuis. Outra mostra uma imagem de Pocahontas, pintada em leo. Ainda outra, a bandeira de batalha da confederao, com sua diagonal azul de estrelas brancas sobre fundo vermelho, que vem causando tanta controvrsia, foi um dia propriedade de Tad Lincoln, o filho do presidente do pas na poca da guerra civil. Ela est exposta em uma das galerias nos pisos superiores.

Como historiador-chefe do museu e autor de um livro erudito sobre a bandeira, John Coski, 56, um sujeito esbelto e de aparncia um tantinho amarfanhada, trabalha com afinco para lanar luz sobre suas diferentes verses, parte do que ele define como “esforo consciente” da parte dos dirigentes da instituio, criada 119 anos atrs, para moderniz-la e transform-la “de um templo” que celebra o velho sul em um “museu moderno, como o Smithsonian”.

Enquanto rola o debate sobre onde exibir bandeiras confederadas –a Assembleia Geral da Carolina do Sul comeou a tratar da questo na segunda-feira (6)–, os crticos insistem em que elas deveriam ser relegadas aos museus. Mas na Virgnia, fica bem claro que nem mesmo os museus conseguem escapar da controvrsia.

“Eles gostam de esconder suas bandeiras no poro”, diz Grayson Jennings, fundador da organizao Virginia Flaggers, cujos membros recentemente protestaram carregando verses modernas da bandeira de batalha contra a deciso do Museu de Belas Artes da Virgnia que, em 2011, removeu a bandeira de uma capela confederada localizada em seu terreno.

Sobre o Museu da Confederao, Jennings diz que “a maioria de ns, sulistas de verdade, deixou de ser scio j h alguns anos”.

Richmond, afinal, era a capital da confederao; o museu fica adjacente a, e abarca, a grandiosa Casa Branca confederada, uma manso com colunas na fachada onde vivia o presidente confederado Jefferson Davis. Jennings e outros defensores da bandeira objetam fuso entre o museu e o Centro da Guerra Civil Americana, muito mais novo, inaugurado em 2006 beira do rio James, no local ocupado pela Tredegar Iron Works, a principal fabricante de canhes e artilharia da confederao.

O centro conta a histria daquilo que os sulistas da velha escola chamam de “guerra entre os Estados” –do ponto de vista unionista, confederado e dos negros. Quando ele estava sendo planejado, segundo H. Alexander Wise Jr., seu presidente, houve uma discusso quanto a uma possvel fuso com o Museu da Confederao, que tem uma vasta coleo de artefatos, muitos deles recolhidos por mulheres que solicitaram objetos histricos s suas famlias. A coleo inclui uniformes contendo furos de balas, cartas frgeis e a espada que o general Robert Lee portava no dia da rendio confederada em Appomattox, em 1865.

Khue Bui/The New York Times

Cathy Wright, curadora do museu, e John Coski, historiador, no acervo do Museu Confederado de Richmond
Cathy Wright, curadora do museu, e John Coski, historiador, no acervo do Museu Confederado de Richmond

“Mas chegou o ponto em que eles desejavam editar e controlar a histria”, diz Wise, que j foi membro do conselho do Museu da Confederao e diretor do departamento de preservao histrica da Virgnia. “E ns dissemos ‘Nada disso, a histria que temos a contar se sobrepe a tudo'”.

Mas diante da insistncia de filantropos locais, as duas instituies chegaram a um acordo e agora operam, no papel e na Internet, como Museu da Guerra Civil Americana. Em 2017, um novo pavilho conjunto de exposies ser inaugurado no local da antiga usina de Tredegar.

B. Frank Earnest, que no passado foi comandante da organizao Filhos de Veteranos Confederados em sua diviso da Virgnia, no se conforma.

“Tudo que existe naquele museu foi doado por pessoas que descendem de soldados confederados”, disse Earnest. “As pessoas doaram seus objetos acreditando que o museu seria um memorial da Confederao, do soldado confederado e da causa pela qual ele lutou”.

Mas os novos tempos –e a queda de pblico– exigem novas ideias, dizem dirigentes do museu. Ed Ayers, historiador da guerra civil, reitor emrito da Universidade de Richmond e presidente do conselho do novo museu, argumenta que o esforo conjunto revelar “o poder e o mistrio da guerra” e resultar em maior compreenso.

“Sem essa compreenso”, ele disse, “nos veremos perpetuamente confusos e em disputa, como vivemos nos ltimos 150 anos e continuamos a viver hoje”.

O projeto (que tecnicamente uma “consolidao” e no uma fuso) tem dois presidentes-executivos: Christy Coleman, 50, negra, a especialista em museus que comandava o Centro da Guerra Civil; e S. Waite Rawls, 66, executivo financeiro aposentado, branco e descendente de soldados confederados, que comandava o Museu da Confederao. Os dois j enfrentaram a ira de doadores, e ambos conhecem bem as questes duras que cercam a bandeira.

“As pessoas me perguntam por que no temos a bandeira confederada em exibio, e eu pergunto qual delas”, diz Coleman. “Estamos falando daquela que tem Pocahontas ou da que tem estrelas brancas e azuis e a palavra ‘lar’?”

Quando o Museu da Confederao criou um espao de exibio em Appomattox, em 2012, com a espada de Lee como pea central, Rawls foi criticado porque o pavilho desfraldava as bandeiras dos Estados confederados individuais mas no a bandeira de batalha quadrada com a diagonal de estrelas que o Exrcito do Norte da Virgnia, comandado por Lee, carregava em combate, ou a bandeira retangular que era desfraldada pelo Exrcito do Tennessee –ambas divisivas, smbolos do racismo ou do orgulho sulista, a depender do ponto de vista de cada pessoa sobre a histria.

“Eles se ocultam por trs da primeira bandeira nacional”, diz Jennings, se referindo chamada “estrelas e barras”, adotada em 1861 pelo governo confederado e vagamente baseada na bandeira da Unio, que traz estrelas e listras. “Tm medo da bandeira de batalha”.

Os visitantes do museu, no centro de Richmond, so recebidos na entrada por uma verso estilizada de uma bandeira diferente, aquela que era desfraldada no quartel-general de Lee. Mas nas silenciosas galerias do segundo piso, oito bandeiras de batalha pudas, com o padro diagonal de estrelas, capturadas na batalha de Gettysburg 152 anos atrs, esto expostas em molduras de preservao especialmente construdas.

“Quando as pessoas veem a bandeira, aquilo que elas entendem como a bandeira confederada”, diz Cathy Wright, a curadora do setor. “Mas queramos explicar que na realidade existia grande variedade de padres e designs”.

Rob Carr – 7.out.2007/Associated Press

Bandeira confederada exibida em evento de automobilismo nos EUA
Bandeira confederada exibida em evento de automobilismo nos EUA

Para isso, a galeria seguinte exibe uma bandeira feita com um xale vermelho tinto, dotado de franjas. L tambm esto em exposio amostras do que Coski define como “kitsch interminvel” –uma revista em quadrinhos que mostra uma mulher negra vestindo um uniforme com a bandeira confederada; um par de cales com a bandeira; uma foto da drag queen Ru Paul usando um vestido longo com o desenho da bandeira.

Em seu livro “The Confederate Battle Flag: America’s Most Embattled Emblem” (a batalha da bandeira confederada: o emblema mais conturbado da Amrica), de 2006, Coski traa a evoluo da bandeira confederada e seus diferentes significados para diferentes pessoas. Com a eroso do apoio poltico sua presena, depois do massacre contra os fiis de uma igreja negra na Carolina do Sul, ele e o livro esto em demanda. A loja do museu esgotou seu estoque na semana passada, e em dado momento a Amazon informava que o livro estava “temporariamente esgotado”.

O estudioso diz, com sua voz mansa, que est “consciente de que uma tragdia horrvel serve como ocasio” para que o trabalho de sua vida seja “descoberto e revelado”, e considera o fato como “causa de reflexo”. Quanto ao candente debate sobre a bandeira, ele o v como “um marco importante”, mas um entre muitos, e no acredita que a questo venha a ser decidida logo.

Traduo de PAULO MIGLIACCI