É por isto que devemos todos fazer enoturismo – Diário de Notícias
Confesso que nunca fui grande apreciador de aguardentes. De vez em quando, lá viro um copito para não fazer a desfeita ao meu sogro, mas sempre me escapou o prazer de queimar a língua e a garganta com aquele líquido etílico que se cola à goela. Foi pelo mesmo motivo de cortesia que quando Luís Vieira me serviu um cálice da sua aguardente velha não pude recusar.
Enquanto a vertia da garrafa para o copo, o dono da Quinta do Gradil contou de onde aquilo vinha – duas barricas feitas pelo seu avô há meio século e desde então meio esquecidas numa cave, até que Luís lhes deu atenção. É assombroso pensar nesta herança: o avô deixou para a posteridade algo que ele próprio nunca viria a provar. E que Luís, a querer repetir a “receita”, terá de o fazer para benefício dos seus netos, não seu. Dá que pensar.
Perante toda esta mise-en-scène, meti o cálice à boca. Para não fazer a desfeita. Mas soube-me diferente. Pela primeira vez senti gosto (e percebi o prazer) numa aguardente. De vez em quando precisamos de uma história. Mais não seja, dispõe-nos de outra forma, põe-nos mais vulneráveis, recetivos ao estímulo que aí vem. Há um par de anos, em entrevista à Evasões, o blogger americano Ryan Opaz, entusiasta das narrativas que gravitam em torno do vinho, confessou: “Deem-me o melhor vinho do mundo e um idiota por detrás dele, e possivelmente nem torno a bebê-lo.” E rematou, com a constatação – razoável – de que a vida é curta, logo o número de garrafas de vinho que podemos beber é limitado.
A história predispõe-nos a gostar. Mesmo daquilo de que, à partida, não gostávamos. E esse é um dos motivos pelos quais visitar uma quinta, conhecer o produtor, ouvir a história da família por detrás, é uma experiência a ter pelo menos uma vez na vida. Mais do que mero recreio de “enochatos” ou de elites entediadas que querem brincar às vindimas, o enoturismo pode ser um programa gratificante (uma revelação, até) para o comum mortal com conhecimento zero sobre o assunto – basta o sentido do gosto e um par de ouvidos dispostos a escutar (e nenhum impedimento para o consumo de álcool).
Prazer pessoal, portanto. Ou não fosse “turismo” a segunda (e maior) metade da palavra em apreço. Depois, há a parte mais importante, aquela em que, mesmo em ambiente convivial e sem pensar muito nisso, se aprende. É aí que o enoturismo opera uma transformação em nós.
Álvaro Martinho é uma figura singular. O sonho de qualquer entrevistador – fala bem, com entusiasmo, tem um conhecimento enciclopédico sobre tudo o que rodeia o seu trabalho, e traz sempre pronta uma história ou uma metáfora. Depois, tem curiosidades deliciosas, como os fados que compõe para as suas vinhas. O enólogo da Real Companhia Velha é um achado, e uma visita às vinhas da Quinta das Carvalhas na sua companhia é toda uma masterclass sobre viticultura, natureza, vida em geral. Conta Álvaro, certo dia um jornalista de um qualquer país nórdico, dois palmos mais alto do que ele, perguntou-lhe por que motivo não apostava mais nas castas internacionais, em detrimento das autóctones. Álvaro pediu-lhe que o seguisse, vinha abaixo. A passo rápido, depois de corrida, e o pobre nórdico lá deu um tombo, depois outro e outro. “Chegámos ao fundo da vinha e perguntei-lhe: “Viste quantas vezes caí? Zero. Sabes porquê? Porque eu nasci aqui no Douro, tal como estas videiras. A ti aconteceu-te o que aconteceria às castas importadas que eu aqui pusesse”.” Até pode saído da sua imaginação, pouco interessa. É uma boa metáfora. E sem meter os pés numa quinta nunca se tem contacto com gente assim. Nem com estas histórias.
Sem meter os pés numa quinta também não se toma pulso ao trabalho que um vinho exige a fazer. Ninguém desconhecerá como um vinho é feito; já saber com quantas uvas se faz um litro, quanto trabalho ao longo do ano é preciso ter para manter essas uvas boas e sãs, quantos ciclos de tentativa-erro se completam até chegar aos resultados, para além de toda a operação logística de produção, estágio, engarrafamento, armazenagem, colocação no mercado, isso são outras contas. O crítico e enólogo Aníbal Coutinho, no seu Guia Popular de Vinhos, defende uma fasquia mínima de dois euros por garrafa para garantir “a dignificação do vinho como produto de qualidade e do produtor como empresário”. E fá-lo com a convicção de um manifesto, apelando ao seu público que não compre vinho abaixo desse valor.
Uma coisa é ver vinhas em fotografia ou vídeo, outra é vê-las no local. Pisar o chão de terra e rocha desfeita, sentir o sol a picar-nos a nuca e o pó que se cola às mãos, peganhentas do sumo das uvas. Olhar para um cesto cheio de cachos e ter de carregá-lo até ao trator. Imaginar fazer isso vezes e vezes até o dia acabar. Foi na visita a uma quinta do Douro, a minha primeira visita com olhos de ver, que o manifesto de Aníbal Coutinho me fez eco na cabeça. De olhos na vinha que se estende encosta acima, ribanceiras que chegam a inclinar-se 45 graus, parei para pensar. É que, num país de salários baixos e longas horas de trabalho, importa lembrar que um vinho, barato ou caro, foi feito por pessoas. Que devem ser pagas de forma justa.
O Douro é porventura o exemplo mais expressivo no panorama nacional, a par das vinhas do Pico. Mas, seja onde for, após visitar uma quinta ninguém no seu perfeito juízo achará caro pagar dois euros por uma garrafa de vinho. Por respeito ao vinho e às pessoas que o fazem. E esse é o principal motivo pelo qual devíamos todos fazer enoturismo.
Editor executivo da revista Evasões