Horizonte perdido
Poucas experincias no mundo foram to atordoantes quanto essa. Nem um bungee jumping na Nova Zelndia, nem olhar para dentro da cratera de um vulco na Islndia, nem atravessar um mar turbulento em Belize: nada me deixou com uma sensao de tontura to grande quando dessa vez, em que eu estava com os dois ps em terra firme, olhando l longe, e no conseguia ver a linha do horizonte.
Nos dias anteriores eu j havia passado por algumas sensaes estranhas. Afinal, quando a diferena entre dois pontos de uma capital pode chegar a quase mil metros de altura –e estamos falando da casa dos 3.000 metros, mais ou menos– seu corpo, no acostumado ao ar rarefeito, estranha mesmo. A digesto a essa altitude quase um esporte de aventura. E um copo de vinho capaz de ter o efeito de um xaxim mido no seu estmago…
No comi mal em La Paz –pelo contrrio. Por razes misteriosas que nem quis investigar, um dos scios-fundadores do Noma (esse mesmo, do chef dinamarqus Ren Redzepi, considerado um dos melhores chefs do mundo) resolveu abrir na capital boliviana um restaurante. O Gustu to bom que fui l duas vezes: para experimentar primeiro um menu de sete pratos e depois um de 12! O problema que nada cai muito bem para o turista.
Todo mundo dizia que, quando eu chegasse ao salar de Uyuni, que era meu destino final nessa viagem, eu me sentiria um pouco melhor. De fato, uma vez ali, a sensao desagradvel do ar rarefeito tinha diminudo, apesar de a altitude no ter mudado to drasticamente assim. Em compensao, descobri um outro desconforto –no propriamente fsico, mas sensorial.
Depois de me acomodar em um incrvel hotel feito de tijolos de sal, peguei um 4×4 para explorar o salar. Minha curiosidade era imensa, pois eu j sabia que essa era uma das paisagens mais fascinantes da natureza. Mesmo assim, o que experimentei ali acabou sendo algo completamente indito.
Conforme a estao do ano, voc tem duas vises diferentes do salar. Na estao seca, conhece todo o solo craquelado, como um enorme deserto plano, infinito. Eu fui em outra poca (fevereiro), quando essa imensa superfcie ganha uma fina camada de gua, transformando-se num gigantesco espelho do cu. E ento que tudo fica meio embaralhado…
De alguma maneira, esse reflexo cria uma iluso de tica e faz com que o horizonte simplesmente desaparea. Essa linha –to familiar que nos ajuda a organizar o mundo, dividindo o cu da terra (ou do mar)– some. Isso mesmo: some. E como se estivssemos flutuando num enorme espao, sem referncia do que em cima ou embaixo.
No fosse a gravidade, seria possvel ter a sensao de que estamos flutuando –alis, apesar dela, somos tomados por uma estranha nusea, que vem provavelmente dessa perda de referencial. uma sensao primeiro assustadora; s depois que seus olhos (e seu labirinto) se acostumam com o que est em volta que voc comea a delirar com aquela paisagem.
Minutos depois de estar circulando por l, voc comea a pensar em no ir embora. Chega ento uma paz estranha –celestial. A rasa piscina faz voc crer que est andando sobre a gua. O cu de um azul brutal no s seu abrigo como sua passarela. A iluso a de que o tempo parou. E voc no quer mais nada da vida alm de ser mais um prisioneiro do salar…