Mouchão. O vinho faz-se de tradições e costumes

Cheira a eucalipto assim que saímos do carro. O aroma percorre a paisagem e, dizem-nos, chega aos vinhos aqui produzidos. Estamos no Alentejo profundo, apesar de não parecer. O carro bem que percorreu alguns quilómetros ladeado de montados mas, chegados ao destino, há um cenário ainda mais rico, com vinhas escondidas entre linhas de água e ladeadas de pinheiros e sobreiros.

A secular Herdade do Mouchão é sobretudo conhecida pelos vinhos de guarda (que aguentam e duram muito tempo na garrafa), ainda que as vinhas ocupem apenas 38 hectares numa propriedade que chega aos 980. Até ao final do ano existe o objetivo de plantar mais uns quantos, sendo que nos próximos cinco a sete anos a ideia é ter 50 hectares. Sobra mais do que espaço para outras produções: na herdade há sobreiros, oliveiras, colmeias e várias cabeças de ovelhas. Não há enoturismo mas o Observador conseguiu fazer-lhe uma visita.

Voltemos ao vinho que, em boa verdade, não foi o primeiro foco de atenção deste projeto familiar. É preciso recuar ao início do século XIX para contar como Thomas Reynolds deixou o norte do país pelo sul, e migrou para os campos alentejanos com o negócio da cortiça em mente. Passadas três gerações, o seu neto adquiriu a herdade com 900 hectares e mais cedo do que tarde deu início à produção de vinho ao plantar várias vinhas e construir uma adega tradicional, de paredes de adobe grossas e brancas e um pé direito altíssimo, que perdura intacta até aos dias de hoje.

A adega da Herdade do Mouchão foi construída em 1901 e ainda hoje está operacional. © Sérgio Ferreira

“A primeira mesa de escolha é aqui”, diz David Ferreira, diretor comercial e de marketing que nos acompanha na visita, apontando para uma das vinhas da propriedade, que em média têm 50 a 60 anos. Esta é talvez a mais estimada e, apesar de se encontrar numa fase de quase hibernação, há rebentos que despontam aqui e acolá. Situada entre dois cursos de água, a vinha dos Carapetos não precisa de rega automática e, a olho nu, as suas muitas fileiras vão de encontro ao horizonte. A tradição do vinho começa aqui, com a vindima a ser feita à mão, e prolonga-se na adega, onde a pisa é feita a pé em lagares de mármore revestidos a cimento.

São grandes, enormes, as portas de madeira pintadas de vermelho. São elas que, ultrapassado o pequeno pátio onde ainda se avista uma antiga bomba para puxar a água do poço, dão acesso ao interior da adega, onde repousam vários tonéis de carvalho francês e português até 5.500 litros, entre mais pipas e barris. Faça chuva ou faça sol, cá dentro a temperatura ambiente é de uma frescura tal que, chegado o verão, encontra-se consolo entre as suas quatro paredes.

Quem por lá anda também é Paulo Laureano, o enólogo consultor de uma casa apostada em vinhos de guarda, que se revelam com tempo e paciência. É ele quem tem por hábito dizer que só o vinho diz quando está pronto. Uma conversa que nem todos têm o dom (e a oportunidade) de dominar.

Dom Rafael (9,90 euros)

SERGIO FERREIRA

O vinho Mouchão, desenhado a partir da casta alicante bouschet é, sem sombra de dúvida, o mais emblemático da herdade. Mas não é o único: a ele juntam-se as gamas Dom Rafael e Ponte das Canas, e ainda o vinho Herdade do Mouchão Tonel nº 3-4, cujo vinho é trasfegado para os tonéis 3 e 4, de carvalho português, macacaúba (madeira brasileira) e mogno, uma vez que, em tempos, descobriu-se que os vinhos que ali estagiavam resultavam sempre melhor do que o esperado. Na Herdade do Mouchão produz-se ainda vinho licoroso, mas também aguardente numa destilaria que, apesar de construída em 1929, ainda opera sem qualquer timidez. E tanto os vinhos como as bebidas espirituosas são engarrafados na propriedade, que possui equipamento para tal.

A tradição impera na herdade e prolonga-se na maneira e nos costumes de fazer as coisas. Nesta terra dominada por vinhas e pelo cheiro a eucalipto — que está a ser queimado ali ao fundo — o tempo parece, de facto, ter parado. Dá vontade de ficar.