O Brexit ou um brinde?
Na mais antiga região demarcada do mundo é improvável encontrar alguém ligado ao negócio do Vinho do Porto disposto a brindar ao Brexit. Mas quem conhece a união centenária do Douro ao Reino Unido confia no peso de uma tradição feita de ciclos de prosperidade e expansão intercalados por guerras, desastres e catástrofes. Há nuvens à vista no horizonte da saída do Reino Unido da União Europeia, mas há também a certeza de que no futuro, como no passado, o Vinho do Porto encontrará a solução para “contrariar a adversidade”, “adaptar-se à realidade“, “aproveitar as oportunidades” e chegar, como sempre, aos copos dos ingleses, dizem os herdeiros das casas britânicas que continuam a operar no sector.
Durante décadas na liderança das exportações do Vinho do Porto, o Reino Unido foi ultrapassado por França no ranking dos maiores mercados do sector já em 1963, mas continua a ser o seu melhor cliente nas categorias especiais e, por isso mesmo, um alvo prioritário a trabalhar.
Quando olham para os números da comercialização, Paul Symington, da Symington Family Estates, e Adrian Bridge, da The Fladgate Partnership (ver textos a seguir), coincidem em destacar as diferenças entre o mercado francês e o britânico, onde preferem focar-se na hora de fazer negócios e olhar o futuro. No ano passado, França comprou 20 milhões de litros por 74,5 milhões de euros, enquanto o Reino Unido pagou 49 milhões de euros por nove milhões de litros, o que significa que este é o alvo de eleição para os vinhos topo de gama, com mais valor. Além disso, nos últimos cinco anos as vendas em França caíram 6,7%, enquanto no Reino Unido cresceram 18%. Em 2015, a trajetória divergente dos dois destinos manteve-se, com França a perder 1,9% e o Reino Unido a ganhar 9%. E se nos primeiros quatro meses de 2016 o Reino Unido aparece em sexto lugar entre os destinos do Porto, isso é pouco relevante para os dois gestores, concorrentes no negócio mas com a mesma visão do quadro atual. “O mercado britânico é muito tradicional e tem o grosso das vendas concentrado no final do ano”, diz Paul. “Baixámos nos primeiros meses, porque ainda havia stocks no mercado, mas os números voltarão à normalidade”, comenta Adrian.
Juntos têm 36% do negócio de Vinho do Porto e concentram algumas das principais marcas históricas do sector. Além deles, resta apenas a Churchill´s como ‘herdeira’ desta tradição inglesa. Fundada por John Graham em 1981, para manter a ligação histórica da família à atividade, tem um peso residual nas exportações, mas apresenta a particularidade de ser a primeira empresa de Vinho do Porto criada nos últimos 50 anos.
São, assim, apenas três os associados britânicos entre os 15 membros da Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP), fundada em 1975 com 39 sócios. Antes dela, no Grémio dos Exportadores havia 24 britânicos em 80 sócios. Já na Feitoria Inglesa, testemunha do peso da comunidade britânica na cidade do Porto desde 1790, restam estes três sócios, contra os mais de 30 que enchiam a casa em meados do século XIX.
No grupo das maiores empresas do sector aparece em primeiro lugar a francesa Gran Cruz, que comprou, no final do ano passado, todos os stocks da Companhia Comercial de Vinho do Porto (CCVP), da família Christie, passando a dominar quase 30% do mercado do Vinho do Porto. Depois estão os Symington (22,5%), a Fladgate (13,5%), a Sogrape (13,4%), que com a compra da Sandeman se terá tornado a única empresa portuguesa a controlar uma casa inglesa, e o grupo venezuelano/espanhol Sogevinus (6,6%).
Dominar ou talvez não
“Os britânicos têm casas emblemáticas e são grandes referências no sector, mas têm rivais no negócio”, sublinha Gaspar Martins Pereira, historiador que escolheu o Douro como foco do seu trabalho. “Os ingleses nunca dominaram no Vinho do Porto e tiveram sempre a concorrência de portugueses, holandeses, noruegueses, franceses, hamburgueses, mas foram fundamentais no seu desenvolvimento”, afirma Paul. Já Adrian admite sem complexos que “os ingleses são a referência do sector, porque criaram o conceito” deste vinho fortificado e o Império Britânico, “com o domínio que tinha dos mares, ajudou a distribuir e a dar notoriedade ao Vinho do Porto”. Aliás, em Inglaterra o Vinho do Porto é designado english men’s wine, o equivalente ao vinho dos homens ingleses.
Nesta tradição, todos veem o peso da ‘velha aliança’ estabelecida pelos dois países através de uma série de tratados e casamentos entre as duas casas reais. Já o Tratado de Methuen (ver texto nas páginas seguintes) é considerado apenas mais um elo na ligação entre Portugal e o Reino Unido. Mas olhar a história ajuda a perceber como o negócio do Vinho do Porto se foi desenvolvendo e adaptando para sobreviver ao tempo e às crises. Inicialmente limitados à atividade comercial, em Gaia, os comerciantes britânicos iniciaram o movimento de compra de quintas no Douro já no período pós-filoxera – a praga que destruiu vinhas e abalou a economia duriense na segunda metade do século XIX –, como provam os exemplos do Malvedos (Graham’s/Symington), Bonfim (Symington) e Eira Velha (Hunt Roope/Sogrape). O comboio, ao reduzir o tempo de viagem entre o Porto e o Douro, ajudou a consolidar a aproximação à vinha. Com a crise que rodeou a II Guerra Mundial, houve um novo movimento de vendas que trouxe fusões e aquisições.
Depois foi a vez das multinacionais do sector das bebidas entrarem num jogo que decidiram começar a abandonar a partir dos anos 90, talvez por perceberem que o balanço entre custos e rentabilidade não trazia os resultados rápidos a que estavam habituadas. A força dos grandes grupos de distribuição, aposta na qualidade e no controlo de toda a produção, da vinha ao vinho, e necessidade de ganhar escala do lado da oferta exigiram, entretanto, mais concentração ao sector. O poder de atração da paisagem do Douro, Património da Humanidade, e o enoturismo justificaram novos investimentos.
Hoje, todos neste sector sabem que o primeiro efeito do Brexit é cambial, decorrente da desvalorização da libra, que ameaça tornar o Vinho do Porto mais caro no Reino Unido, o que pode quebrar de alguma forma o consumo. No entanto, pelo menos nesta fase, os Grupos Symington e Fladgate mantêm os investimentos previstos, porque este é um negócio gerido a médio e longo prazo, não na instabilidade do curto prazo. E é global. Adrian Bridge admite que o fator cambial pode significar ganhos no negócio, com os Estados Unidos a “virem a equilibrar as coisas”. Paul Symington recorda uma frase do pai sobre o final da crise depois da II Guerra Mundial para provar que os ciclos se sucedem: “A luz ao fundo do túnel veio com o grande Vintage de 1963. Muito bem aceite pelo mercado, procurado pelas grandes garrafeiras e colecionadores, trouxe a confiança de volta ao sector”.
100% Porto e inglês
A Taylor’s, casa mãe do Grupo The Fladgate Partnership, nasceu em 1692, pela mão do comerciante inglês Joe Bearsley. Só faz Vinho do Porto
Adrian Bridge, diretor-geral do Grupo The Fladgate Partnership, encara o futuro com “a confiança” de quem gere empresas com três a cinco séculos de história e acredita que Portugal, assim como o negócio do Vinho do Porto, continuam “cheios de oportunidades“. “É preciso ter uma visão de médio a longo prazo, até porque, independentemente do Brexit, a globalização continua”, defende.
A prová-lo tem os seus registos de exportação: hoje vende o Porto em 102 países, quando há 15 anos estava presente apenas em metade destes destinos. E no volume de negócios, que deverá chegar a 100 milhões de euros em 2016, dois terços vêm diretamente do Vinho do Porto, mas há um terço a chegar através da distribuição e da hotelaria/enoturismo, onde encontrou uma nova forma de vender ao exterior, atraindo “os consumidores a visitarem-nos”.
Obrigatório é manter a especialização no Vinho do Porto e nas categorias especiais. “Somos distribuidores de vinhos, mas na produção o foco está a 100% no Vinho do Porto. Porquê? Porque as uvas de qualidade não são suficientes para dividir com o vinho de mesa”, diz o gestor inglês, com 621 trabalhadores entre o Vinho do Porto, onde opera com as marcas Taylor’s, Fonseca, Croft e Krohn, a hotelaria e a distribuição (On-Wine.pt e Heritage Wines).
No coração do Douro Vinhateiro tem 12 quintas, que garantem 2% da produção da região e 25% da produção própria do grupo, complementadas depois através de um trabalho de parceria com viticultores locais. Este investimento na terra é visto como “uma forma de garantir a qualidade do produto final, continuar a liderar nas categorias especiais, na criação de valor, e também estar dentro dos assuntos da lavoura duriense”, explica Adrian Bridge. O seu foco prioritário na hora de investir no Vinho do Porto é, no entanto, os stocks de vinhos envelhecidos, que “consomem muito capital”.
Com uma quota na ordem de 13,6% e o terceiro lugar no ranking dos maiores operadores do sector, o Grupo The Fladgate Partnership só nasceu em 2002, um ano após a compra da Croft, a mais antiga das casas de Vinho do Porto, com origem em 1588. “Tínhamos 100 colaboradores de um lado e 82 que chegavam de novo. Considerámos que esta seria a melhor forma de trabalhar e conseguir um casamento feliz”, conta o diretor-geral.
Já a história da Taylor’s, a casa mãe do grupo, começa em 1692, com a chegada a Portugal do comerciante inglês Job Bearsley, para comercializar “tinto de Portugal”, do Minho. O seu filho Peter terá sido o primeiro membro do comércio inglês de vinho a atravessar o Marão para fazer a ligação entre o litoral e o Douro Vinhateiro. Bartholomew, outro filho de Bearsley, terá sido o primeiro comerciante inglês a comprar terra no Douro, a Quinta do Salgueiral, na Régua, em 1744, numa decisão ousada, que deu à família a oportunidade de “construir relações” com os produtores locais e assegurar a primeira escolha dos melhores vinhos. “Procuravam qualidade e preços para competir, tal como agora”, comenta Adrian Bridge 272 anos depois.
O crescimento por aquisições, na linha da concentração do sector, começou com a compra de quintas, stocks e cascos da Borges (1998), continuou com as casas Fonseca, líder no Vinho do Porto nos EUA (1949), Croft (2001), Osborne (2005) e Krohn (2013). Com elas vieram algumas quintas, incluindo a Roeda, adquirida pela Taylor’s em 1844, mas entretanto vendida à Croft, em 1890. Agora o foco do grupo passa também, cada vez mais, pela hotelaria e enoturismo, com o The Yeatman, inaugurado em Gaia em 2010, e as aquisições recentes do Vintage House Hotel (2015), no Pinhão, e do Hotel Infante Sagres (2016), no Porto.
Um escocês que casou com o Douro
A história do Grupo Symington Family Estates remonta a 1882. Hoje soma 2500 hectares de terra e mil de vinha no Douro
O primeiro Symington chegou a Portugal em 1882. O escocês Andrew James Symington vinha trabalhar na indústria têxtil, mas cedo se interessou pelo comércio de Vinho do Porto. Ganhou fama de “bom provador” e pelo casamento com Beatrice Leitão Carvalhosa Atkinson, descendente de uma família já com um século de experiência no sector, reforçou a ligação a um negócio onde começou por se tornar sócio da bicentenária Warre Co.
Hoje, os Symington mantêm passaporte britânico, orgulhosos das suas raízes escocesas e da parcela de sangue português que entrou na família através de Beatrice, convictos de que a ligação ao Vinho do Porto “é total e para manter”, de acordo com regras de sucessão bem definidas, diz Paul Symington, presidente deste grupo familiar com um volume de negócios de 91 milhões de euros – 89% do qual na exportação -, 570 trabalhadores, um portefólio de marcas emblemáticas, que junta a Graham’s, Cockburn’s, Dow’s e Warre’s, e 27 quintas no Douro. Ao todo, são 2500 hectares de terra e mil hectares de vinha, números que fazem dos Symington os maiores proprietários de vinha da região. A família, pioneira na introdução do automóvel no Douro e em inovações tecnológicas como o lagar robótico, capaz de reproduzir o efeito do pé humano na pisa tradicional, garante um quinto das suas necessidades de uva internamente e obtém a parcela restante num trabalho de proximidade com mais de mil lavradores.
Fornecedores da Casa Real, estão a lançar a quinta geração no grupo. Têm uma fatia superior a 20% no negócio do Vinho do Porto e um confortável segundo lugar no ranking de vendas do sector. O Reino Unido é o seu melhor mercado, com uma quota de 26% em 2015. Na Cockburn’s têm a marca de Vinho do Porto mais vendida em Inglaterra.
Na produção apostam nas categorias especiais. “A par de duas adegas grandes, nas Quintas do Bonfim e do Sol, temos sete adegas mais pequenas noutras quintas, exatamente para podermos maximizar a qualidade”, explica Paul Symington. O Vinho do Porto garante 90% do seu negócio, mas fazem também vinhos Douro DOC (com denominação de origem) e veem “algo de único nesta capacidade de reinvenção da mais antiga região demarcada do mundo”. “O Douro tinha o Porto como o seu vinho consagrado e está a conseguir afirmar-se como produtor de grandes vinhos de mesa, o que é impressionante e nunca foi feito por nenhuma outra região do mundo”, sublinha.
A primeira quinta da família foi a Bonfim. Comprada em 1896, no período pós-filoxera, iniciou um “investimento necessário para concentrar e controlar a produção e a qualidade do vinho e estar mais perto dos lavradores”, mas os grandes investimentos do grupo nas quintas do Douro como a Cavadinha (1982) e o Vesúvio (1989) surgem num segundo ciclo de aproximação à vinha, ditado pela decisão de ganhar escala e controlar ainda mais a oferta. Já a compra da Cockburn’s aos norte-americanos da Beam Global Spirits Wine “foi uma aposta defensiva face às multinacionais e a outros concorrentes do sector”, explica.
Sobre as nuvens no horizonte do Brexit, Paul é pragmático. “Temos de saber olhar para a história e reagir privilegiando a estabilidade.” E exemplifica: a família comprou as Quintas do Bonfim, Zimbro e Senhora da Ribeira no final do século XIX, mas teve de vender as duas últimas para garantir a sustentabilidade da empresa “nos anos difíceis” que acompanharam a II Guerra Mundial, mas em 1998 readquiriu a Senhora da Ribeira. E a Quinta dos Malvedos não chegou ao grupo em 1970, com a Graham’s, “porque o dinheiro não dava para tudo”, mas foi comprada seis anos depois.
A troca entre panos ingleses e o Port wine
Ao diplomata John Methuen, o inglês que desenhou o tratado comercial com Portugal em 1703, se deve um caso de estudo no comércio internacional e motivo de confronto entre doutrinas económicas na época. Ao fim e ao cabo, quem ganhou continua a ser uma pergunta com diferentes respostas
As relações estreitas de Portugal com Inglaterra são das mais antigas na diplomacia europeia. Ainda na primeira dinastia portuguesa, o rei “poeta e lavrador” D. Dinis estabeleceu o primeiro tratado comercial com Inglaterra, em 1308, fruto da sua visão estratégica atlântica. Mais tarde, D. Fernando I fez uma aliança com os ingleses em 1373.
O meio irmão deste último rei da dinastia Afonsina, o clérigo João, Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro I e da sua amiga galega Teresa Lourenço, acabaria por se apoiar política e militarmente nos ingleses para derrotar os castelhanos e se consagrar como rei, D. João I, o primeiro da dinastia de Avis que marcaria a história da globalização portuguesa. Com o rei Ricardo II de Inglaterra, D. João firmaria o Tratado de Windsor, em 1386, e casaria com Philippa, da casa ducal de Lancaster.
Mais de três séculos passaram e muito mudou no mundo. Portugal já não era mais a potência de primeiro plano do século XV e XVI. Inglaterra emergia, no final do século XVII, como grande potência que esperava o momento para ultrapassar a Holanda. Mesmo no início do novo século, a história das relações com Inglaterra ficaria marcada por um novo tratado comercial – um dos mais célebres da história económica, que ainda hoje provoca polémica entre académicos. Envolve a última dinastia portuguesa, a dos Bragança, e foi filho da geopolítica, por mais estranho que pareça. O tratado ficou conhecido pelo apelido do diplomata inglês que o desenhou – Methuen.
A história começa com o contexto da sucessão em Espanha, depois do final da dinastia dos Habsburgos (entre nós conhecida como Período Filipino), que levou o monarca português D. Pedro II a apoiar a estratégia inglesa que não queria que um Philippe d’Anjou, neto do rei francês Luís XIV – o então cognominado Rei Sol –, se apoderasse do trono vago em Madrid.
Uma “Grande Aliança”, comandada pela rainha Ana de Inglaterra, obrigou D. Pedro, em Lisboa, a aderir em 1703, tornando o porto da capital lusa a base estratégica atlântica para as frotas que apoiavam as operações em Espanha.
Mas no mesmo ano, juntamente com a aliança político-militar para travar os franceses na Península, fechou-se um acordo comercial, em dezembro, que levaria o apelido de John Methuen, o chanceler da Irlanda que fez de embaixador extraordinário da corte inglesa em Portugal. Em nome de Ana, tornou célebre o caso de estudo da troca de panos por Vinho do Porto no comércio internacional. Em documentos oficiais portugueses, John era mesmo designado “D. João Methuen”, com o nome aportuguesado, e terá sido um dos diplomatas ingleses que convenceram o monarca português a alinhar contra Philippe d’Anjou e os desígnios de Luís XIV.
Dois caixotinhos, não de vinho, mas de moedas de ouro
Para obter o desfecho, John gastou, segundo os relatos da época, uma fortuna do erário público britânico na corrupção do sistema decisório português, incluindo o próprio negociador, o marquês de Alegrete, vedor da Fazenda (o cargo antecedente a ministro das Finanças) e membro do Conselho de Estado. Estas ‘luvas’ acabaram por se saber porque John, como bom funcionário, prestou contas junto do Parlamento inglês, referindo que gastara 44 mil moedas de ouro, joias diversas e 216 mil cruzados.
No rol, além do marquês, estavam, entre os mais proeminentes, o duque de Cadaval, outro membro do Conselho de Estado, o confessor jesuíta do rei, e o secretário de Estado Roque Monteiro Paim, que teria sido visto a sair de casa de Methuen “com dois caixotinhos que deviam conter moedas de ouro”, contou Jacob Frederico Torlades Pereira de Azambuja, de seu nome completo, em Memórias Históricas.
A doutrina do comércio capitalista na época defendia que cada país cuidasse de ter uma balança comercial favorável, com excedentes externos, desse por onde desse – chamava-se mercantilismo. O que isso significava é que cada parte deveria promover as suas exportações nativas, as suas especializações, e controlar estreitamente as importações, mediante a imposição de tarifas favoráveis aos aliados geopolíticos e punitivas para os inimigos.
À época, no quadro dessa doutrina, Portugal tinha como transacionáveis o Vinho do Porto e os ingleses haviam desenvolvido a manufatura têxtil e Londres queria ter destinos de exportação cativos nos seus aliados e nos espaços do ultramar destes. O Brasil era o mais importante, no caso português. Os ingleses até achavam a joia vinícola portuguesa como “adocicada de mais”, mas acostumaram-se ao sabor como “um dever patriótico”, dizia Charlotte M. Waters em An Economic History of England, publicada em 1949. Tornou-se um costume nacional, tal como o chá introduzido anos antes pela princesa portuguesa Catarina Henriqueta de Bragança, que casou com Carlos II e se tornou rainha consorte, a última católica numa Inglaterra anglicana.
Dois tratados precursores
Mas o próprio negócio do Vinho do Porto tinha uma particularidade – boa parte do negócio do export estava na mão dos comerciantes ingleses radicados no Porto. E mesmo em Lisboa, que centralizava o comércio com os destinos do império português, as casas comerciais inglesas foram adquirindo predominância. Muitos comerciantes ingleses vinham tentar fortuna em Portugal ou nos portos do Brasil e da Índia, incentivados pelos tratados leoninos impostos por Oliver Cromwell, em 1656 – considerado a Magna Carta de implantação dos ingleses por cá –, e por Carlos II, cinco anos depois. Estes dois tratados são considerados por alguns historiadores como precursores.
Em suma, os ingleses dominavam a logística e ganhavam em vários tabuleiros. Como conta o economista Lúcio de Azevedo na sua obra Épocas de Portugal Económico, publicada em 1928: “Os ingleses de Inglaterra mandavam as fazendas inglesas, por navios ingleses, aos [comerciantes] ingleses em Portugal; e, de cá, mandavam estes, nos mesmos navios, os vinhos que compravam e o oiro que recebiam.”
Em si mesmo, o texto do Tratado de Methuen era conciso, mas sabiamente redigido, fruto do dedo inglês. Tinha dois artigos fundamentais e o terceiro era meramente protocolar. 1.º artigo: Portugal obrigava-se, para sempre, a admitir os panos e outras manufaturas de lã inglesas (cuja importação se proibira antes, ao abrigo das leis “antissuntuárias” que combatiam o luxo usando produtos importados). 2.º artigo: Inglaterra promete também, para sempre, receber os vinhos portugueses, pagando estes dois terços dos direitos alfandegários impostos aos vinhos franceses. Se alguma vez fosse abandonada essa pauta diferencial, ficava ao arbítrio do rei português proibir novamente a importação dos tecidos ingleses. Coloquialmente, os ingleses chamavam-lhe de Port Wine Treaty.
Em suma, ambos os países obtinham um mercado cativo “para sempre” e, no caso português, usufruindo de uma vantagem tarifária na exportação do vinho. Mas o acordo não mencionava os vinhos italianos e espanhóis e admitia, implicitamente, que Inglaterra pudesse extinguir o diferencial tarifário. O embaixador português em Londres, Luís da Cunha, três anos antes da assinatura do tratado, resumia assim a visão inglesa: “O que eles querem é adiantar as suas manufaturas e arruinar as que começam em Portugal.”
O que Adam Smith se esqueceu de contar
O tratado viria a servir, muito mais tarde, de palco de polémica de doutrinas económicas. Adam Smith, considerado o “pai” da economia moderna, mostrou-se, 70 anos depois, descontente com o negócio, acusando-o de não ter sido favorável aos consumidores da sua Inglaterra, pois os impedia de comprarem um vinho que tinham mais perto e melhor, o francês. No livro IV, capítulo VI, do seu mais conhecido livro, A Riqueza das Nações, Smith dizia, preto no branco: “Este tratado é, sem dúvida, vantajoso para Portugal e desvantajoso para a Grã-Bretanha.” E mais adiante: “Contudo, tem sido muito elogiado como uma obra-prima da política comercial de Inglaterra.” Mas ele não contava a história toda…
Os partidários do tratado respondiam a Smith que os vinhos franceses se tinham de comprar com metal sonante e que os portugueses eram por via de uma troca de mercadorias, e que, dado o défice comercial a favor de Inglaterra, entrava por semana o equivalente a 50 mil libras em ouro sonante.
De facto, para Inglaterra não ia só o vinho, também ia o ouro, sobretudo o que vinha do que então se chamava a “vaca leiteira” da corte portuguesa – o Brasil. Ouro que, em parte, estacionava pouco tempo em Lisboa. A faturação do vinho não dava para pagar o pão, o bacalhau da Terra Nova e as lãs e vestuário made in England que ficavam ou pelo continente português ou marchavam para o Brasil.
A balança comercial tinha um ‘buraco’, o défice, que era coberto pelo ouro, que beneficiava a balança de pagamentos inglesa e acabava por financiar o investimento doméstico da que viria a ser a pátria da Revolução Industrial com um ciclo de invenções e inovações iniciado por volta de 1730. Só a partir de 1786, e por um curto período de tempo, Portugal se tornou credor de Inglaterra, graças à exportação de algodão do Brasil para os portos ingleses.
Ainda no partido do contra no país de Smith, Lúcio de Azevedo recordou que “dez anos depois do tratado escrevia-se em Inglaterra que fora um ato de traição, realizado sem o voto do Parlamento, e que o negociador [John Methuen], já falecido, merecia que lhe tivessem cortado a cabeça em vida”.
Já o economista David Ricardo, o terceiro dos 17 filhos de um corretor de bolsa judeu sefardita de origem portuguesa vindo da Holanda para Londres, usava o tratado para ilustrar a bondade da sua lei das vantagens comparativas no comércio internacional.
Teorias à parte, na política doméstica inglesa o tratado serviu para uma guerra de palavras constante no próprio Parlamento no século XVIII. A favor, os Tories, contra, os Whigs.
Obra-prima da trapaça ou bom negócio para o Douro?
O historiador português Oliveira Martins, no século XIX, não esteve com meias medidas e denunciou o tratado: “O Tratado de Methuen tornou-nos feitores de Inglaterra e fez do país uma fazenda, uma vinha da Grã-Bretanha no meio-dia.” Já no início do século XX, o historiador alemão Werner Sombart, um dos expoentes da chamada ‘corrente historicista’, vilipendiava o tratado como “obra-prima de hipócrita trapaçaria” na sua obra O Capitalismo Moderno.
Mas outro historiador português, Jorge Borges de Macedo, a contracorrente, publicou um trabalho, em 1989, em que concluía o que pareceu ser óbvio a muitos na época: “O tratado não fazia mais do que melhorar as condições de escoamento de um produto português em concorrência [internacional] – o Vinho do Porto.” A pressão sobre o port wine vinha dos vinhos franceses, mas com as guerras contra França os ingleses tinham dificuldade em importá-los e a oportunidade foi preenchida, ainda que não fossem substitutos perfeitos.
Além disso, o tratado desempenhou ainda um papel de “arrastamento” no desenvolvimento capitalista da agricultura daquela região duriense, com a injeção de capitais oriundos do comércio para a produção, permitindo o salto do embrionário sector exportador, como explicou Manuel Villaverde Cabral no final dos anos 70.
Um economista norte-americano, R. Warren Anderson, da Universidade de Michigan, acha, inclusive, que o tratado foi fruto dos próprios interesses dos envolvidos das duas partes, mais do que resultado de algum “modelo” de vantagem comparativa entre dois transacionáveis escolhidos inteligentemente. O próprio Methuen tinha vinhas e fabricava vinho, que oferecia a políticos influentes em Londres, e a sua família e a da mulher eram do negócio têxtil. O genro importava vinho em Londres e o irmão exportava a partir do Porto. O marquês de Alegrete e o conde do Cadaval eram latifundiários e produziam vinho. O confessor do rei tinha um objetivo político: debilitar o negócio judeu. “O tratado não foi gerado num vazio por funcionários políticos sem interesses. Foi o resultado racional de atores procurando maximizar também a sua própria riqueza e poder”, conclui Anderson em Rent Seeking and the Treaty of Methuen, publicado em 2012.
A guerra civil internacionalizada em Espanha terminaria com a vitória do candidato francês, que instauraria a dinastia dos Bourbon (que se mantém até hoje) e o abandono das pretensões geopolíticas inglesas e, por arrasto, portuguesas. O monarca D. João V assinaria o tratado de paz com França em 1713 e com Philippe d’Anjou, já Filipe V de Espanha, em 1715.
Bailar com as filhas dos lavradores durienses
Do episódio ficou o Tratado de Methuen, até que Sebastião José de Carvalho e Melo, enviado especial ministro plenipotenciário à corte de Londres, se começou a indignar com a forma como os ingleses dominavam a praça de Lisboa e se apossaram do comércio com o Brasil. As manobras dos comerciantes ingleses no mercado contra os lavradores durienses e o poder da feitoria inglesa do Porto irritavam o que mais tarde seria secretário dos Negócios Estrangeiros, em 1750, e finalmente secretário dos Negócios do Reino (o equivalente a primeiro-ministro) a partir de 1756, no reinado de D. José I, um ano depois do terramoto.
Sebastião José, conde de Oeiras, ficou conhecido na história como ‘Marquês de Pombal’. Na sua Quinta Inspeção sobre o estabelecimento das artes fabris e manufatureiras do reino deixa um pormenor: os ingleses “só compravam aos lavradores que lhes facilitavam as filhas para bailar com eles”. Frei João de Mansilha, um dominicano filho de proprietários durienses e conhecedor das realidades da viticultura da região, foi encarregue do desenho das bases da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro como golpe direto à feitoria inglesa. Bartolomeu Pancorbo, um negociante da Biscaia a residir no Porto, o magistrado Luís Beleza de Andrade, futuro provedor da Companhia, e Frei João foram os três pilares do projeto, com vista a salvar da ruína o “País Vinhateiro do Douro”. A publicação do alvará régio de 1756 confirmou os primeiros estatutos da Companhia Geral.
O complexo do export inglês reagiu. O governo britânico mandou representantes sucessivos a Lisboa. Debalde. O Marquês decidiu depois outorgar à nova Companhia o negócio de quase todo o Brasil e proibiu os chamados “comissários volantes”, na maior parte mercadores ingleses de passagem pelos portos brasileiros.
A história do Tratado de Methuen ainda continuou com o tratado, de fevereiro de 1810, entre Portugal e Inglaterra assinado no Rio de Janeiro, onde então se sediava a corte lisboeta aquando das invasões napoleónicas e do recuo estratégico das instituições portuguesas, em 1808, para o Brasil.
Desde 1825 que a parte portuguesa pretendia entabular negociações para terminar o tratado. O então ministro da Guerra e do Comércio inglês, William Huskisson, argumentava com a perpetuidade para dizer que não. Mas o mesmo Huskisson, cinco anos depois, quando já era apenas parlamentar, aderiu à ideia, pois, com a independência do Brasil e a chegada à maturidade da primeira vaga da Revolução Industrial, a estratégia britânica já era outra. O Tratado de Methuen morreu, finalmente, com o tratado de 1842 entre os dois países. “Os dois pesadelos da nação [portuguesa], Cromwell [imposição do tratado de 1654] e Methuen, sumiam-se no passado”, concluía J. Lúcio de Azevedo.
Este artigo é parte integrante da edição de Agosto de 2016 da Revista EXAME