Respeito ao Chile
O lugar se chamava Vale da Lua, mas o calor e o ar seco, que faziam sangrar o nariz, no deixavam ningum se esquecer de que estvamos no s na Terra, como num dos cantos mais inspitos dela.
claro que, a menos de 10 metros, a guia estava com sua mochila ainda repleta de garrafinhas de gua –sem falar que um almoo generoso aguardava nosso pequeno grupo no hotel. Mas isso no afastava a sensao de que essa era uma aventura especial.
E isso num pas onde eu j havia experimentado uma corrente de ar frio na base de um vulco, j tinha curtido a brisa do Pacfico, j havia congelado meu p numa cidadezinha encravada na neve e tambm j tinha olhado com reverncia para a cadeia de montanhas que espreme sua capital contra o mar e pensado: “Ta um lugar que merece respeito”.
Esse lugar merece tambm solidariedade. Afinal, o Chile aparece com frequncia incmoda nos noticirios por causa de perigos naturais. Na semana passada, diante da ameaa de um tsunami, vimos a presidente Michelle Bachelet dizer: “Mais uma vez temos que enfrentar um poderoso golpe da natureza”.
As vtimas foram relativamente poucas, se comparadas a outras tragdias na regio –em um terremoto em 2010 foram mais de 500 pessoas. Mas mais de 1 milho de pessoas foram deslocadas de reas de risco para escapar da ameaa de ondas gigantes.
Apesar disso, quero celebrar o Chile como uma terra de maravilhas. A mesma natureza que ameaa constantemente o pas concentra num s territrio belezas incrveis. O tal Vale da Lua, por exemplo, fica no deserto do Atacama –um dos mais bonitos que j visitei no mundo.
No mesmo Chile, experimentei a maravilha de acordar em Pucn (bem cedo) e admirar a beleza que ver o dia comear ao p de um vulco com sua cratera coberta de neve. Ainda no tive a chance de ir at o extremo sul do pas –est na minha lista de prioridades! Mas acho que j conheo o Chile bem o suficiente para eleger meu lugar favorito: um vilarejo pequeno, hoje quase abandonado, chamado Sewell.
Declarada Patrimnio da Humanidade pela Unesco, Sewell mais uma cidade-fantasma. No seu auge, l pela primeira metade do sculo 20, chegou a ter 15 mil habitantes, mas nenhuma rua: s escadas, que conectavam os alojamentos das famlias dos mineiros na extrao de cobre.
A mina, El Teniente, ainda ativa, mas os trabalhadores hoje vivem em Rancgua, ao p das montanhas. E, mesmo com o registro daqueles dias difceis, no h quem no sinta saudades de Sewell. Ningum mais, alis, do que o senhor Eduardo.
Quando visitei a cidade, em 2008, ele foi meu guia informal –e suas lembranas da vida a 2.200 metros de altura vinham como uma avalanche. Aos 81 anos, ele no se esquecia dos degraus onde conheceu sua mulher, da dificuldade de ver seus filhos nascerem no simples posto de sade que havia por l, dos bailes animados no clube social, mas sobretudo das noites em que brilhava no Palitroque.
Nessa casinha pintada de azul funcionava o boliche de Sewell, onde o senhor Eduardo era o indisputvel campeo. Seu truque, ele me explicava entusiasmado, era apoiar-se na perna direita (e no na esquerda, como seus amigos) na hora de jogar a bola.
Era um strike atrs do outro, contava-me ele, com um sorriso que s no era maior do que quando ele se lembrava de Sewell nas festas de dezembro: com as casinhas coloridas, ruas iluminadas e a neve cobrindo tudo, “sua cidade” brilhava como uma rvore de Natal esculpida dos Andes.