Terra, água e lembranças traçam esboço do Pantanal
Os habitantes do Pantanal tm um jeito de falar quase no falando, com economia de frases que se iguala dos gestos sempre contidos e lentos, em sincronia entre fala e aceno. Hugo Reiners elevava essa mmica ao paroxismo e, onde os estertores agnicos alcanavam o mximo, ele resumia seus movimentos ao mnimo e ao vagaroso, mas com preciso de predador.
Eu o assistia como a um vaqueiro perdido no fim do mundo em chamas, do alto de seu cavalo (uma distoro do tempo e do esquecimento, pois os cavalos pantaneiros so mestios e baixos) e com o eterno panam espera da ventania que nunca vinha; Hugo e suas calas de couro insistem em no desbotar no cromo onde sua lembrana est afixada.
Era um homem gentil, de acordo com sua quietude. Trazia no semblante certa placidez prxima da tristeza e hoje, sabendo de seu final abrupto, consigo ver nos seus olhos o que talvez ele j conseguisse enxergar: o futuro sem via de escape, o beco sem sada de um destino fatal.
Hugo foi a representao superior do desenraizamento de nossa famlia alem. Era casado com a bororo Lucila, prima distante do marechal Rondon, tambm ele dono de sangue ndio. Viviam com empregados na fazenda Sumidouro, a Terra Prometida dos sonhos de Hugo que, sendo no centro do Pantanal, no poderia tambm deixar de ser sua gua Prometida.
Seis meses por ano as cheias de vero transformavam a fazenda em terreno submerso. Nos sonhos desmantelados de Hugo a Terra Prometida e a Atlntida tinham idntico endereo.
A sede de Sumidouro era o casaro s margens do So Loureno, um afluente do rio Paraguai, acobertado por mangueirais que no tinham comeo nem fim. Rodeada pelo alpendre e por redes de dormir estendidas sob o final da tarde que nunca se opunha aos nossos olhares, a umidade daquelas paredes era desproporcional ao calor externo. Minava gua da cal branca.
No canto da sala havia enormes potes de cermica com gua potvel de onde no era incomum se pescar escorpies. Toda semana algum se intoxicava com artrpodes suicidas que despencavam das vigas.
Sucumbiam ao impacto contra os potes, indo mergulhar nas brechas de uma ou outra tampa mal disposta, liberando o veneno na gua que beberia algum inadvertido. Uma chuva txica que caa apenas de noite.
Meu tio Hugo e o Pantanal sempre sero feitos de terra, gua e lembrana.
Joca Reiners Terron, 47, escritor. Viveu at seus 15 anos no Centro-Oeste, onde seu bisav aportou, vindo da Alemanha. No pretende voltar nunca mais.
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